Escrito por Bruna Soldera em 05 Março 2025 Postado em Blog do Instituto Água Sustentável

O acesso ao saneamento básico e à água limpa é essencial para a saúde, a dignidade e a qualidade de vida da população. Sem esses recursos, milhões de pessoas ficam expostas a doenças graves, como diarreia e infecções, que afetam especialmente crianças e idosos. Além disso, a falta de saneamento compromete a educação, pois crianças doentes faltam à escola, e impacta a economia, aumentando os gastos com saúde e reduzindo a produtividade. Garantir água potável e infraestrutura sanitária adequada não é apenas uma questão de saúde pública, mas um direito fundamental que promove desenvolvimento social e equidade.

Em uma entrevista com Nelson Arns entrevista com Nelson Arns pode-se ver um relato profundo e comovente sobre a urgência do saneamento básico, especialmente no contexto de crianças e comunidades carentes no Brasil. Arns, com sua vasta experiência na Pastoral da Criança e em projetos de saúde pública, apresenta um panorama detalhado dos desafios enfrentados e das soluções implementadas para garantir o acesso à água potável e ao saneamento adequado para as populações mais vulneráveis.

A Raiz do Problema: Falta de Saneamento e Mortalidade Infantil

A trajetória de Nelson Arns, desde sua infância em áreas rurais com saneamento precário até seu trabalho incansável na Pastoral da Criança, ilustra a importância vital dessa questão. Arns cresceu em um ambiente onde o acesso à água era limitado e as condições sanitárias eram rudimentares, o que o sensibilizou para a realidade enfrentada por milhões de brasileiros.

Pastoral da Criança surgiu como uma resposta direta ao alarmante número de mortes infantis causadas por diarréia, uma doença frequentemente relacionada à falta de saneamento. Na década de 1980, hospitais infantis superlotados eram a norma, com crianças desidratadas lutando pela vida. A ausência de água tratada e sistemas de esgoto adequados contribuía significativamente para a disseminação de doenças e para a alta taxa de mortalidade infantil.

Diante desse cenário desolador, o UNICEF procurou Dom Paulo Evaristo Arns, que por sua vez mobilizou a Dra. Zilda Arns, mãe de Nelson, para liderar uma iniciativa que pudesse reverter essa situação. A Pastoral da Criança, então, passou a focar em ações simples, mas eficazes, como a reidratação oral, o incentivo ao aleitamento materno, o acompanhamento do peso das crianças e a promoção da imunização.

Histórias que Tocam a Alma: A Realidade nas Comunidades Carentes

Arns compartilha histórias impactantes de seu trabalho no Maranhão e no Ceará, onde a alta mortalidade infantil era uma realidade constante. Essas narrativas revelam a dimensão humana do problema e a importância de ações que vão além da infraestrutura.

A imagem da “roseira florida” é particularmente emblemática. Em uma paróquia no Ceará, as freiras mostravam uma roseira como um símbolo da esperança e da vida. Antes, cada rosa branca era um pedido de uma criança para enfeitar o caixão de um “anjinho”, uma criança que havia falecido. Com a implementação de ações de saneamento e cuidados de saúde, a roseira passou a florescer continuamente, celebrando a vida e o fim daquela triste rotina.

Arns relata o caso de uma criança no Maranhão que, apesar de ter nascido com bom peso, chegou a um ano de idade pesando apenas 2,3 kg, um quadro de desnutrição severa. A mãe, já desesperançosa, não dava muita atenção à criança. No entanto, com o apoio da Pastoral da Criança, a criança se recuperou e, ao sorrir para a mãe, despertou nela um amor e um cuidado renovados. Essa história ilustra como a esperança e o apoio podem transformar vidas e fortalecer os laços familiares.

Desafios e Superação em Áreas de Difícil Acesso

entrevista revela os desafios enfrentados em áreas de difícil acesso, como favelas e comunidades isoladas, onde a violência, a desconfiança e a falta de infraestrutura são obstáculos a serem superados. Nesses locais, a simples tarefa de entrar em contato com a população pode ser arriscada.

Arns demonstra que, com respeito, sensibilidade e a compreensão da dinâmica local, é possível estabelecer laços com a comunidade e implementar projetos de saneamento. Ele destaca a importância de ouvir os moradores, respeitar seus costumes e envolvê-los no processo de tomada de decisão.

Uma das estratégias utilizadas pela Pastoral da Criança é a formação de voluntários locais, que conhecem a realidade da comunidade e podem atuar como agentes de transformação. Esses voluntários são treinados para identificar os problemas, mobilizar a população e implementar soluções.

Arns ressalta a importância de adaptar as tecnologias e os projetos às necessidades específicas de cada comunidade. Em vez de impor soluções prontas, é fundamental trabalhar em conjunto com os moradores para encontrar as melhores alternativas.

A Busca por Soluções Sustentáveis: Envolvimento da Comunidade e Gestão Local

Um dos pontos-chave da entrevista é a importância de envolver os moradores no manejo dos equipamentos e na manutenção dos sistemas de saneamento. Arns enfatiza que, ao capacitar a comunidade para cuidar da sua própria infraestrutura, garante-se a sustentabilidade das ações.

Ele cita o exemplo de um projeto no Ceará, onde a companhia de saneamento subsidiou a manutenção dos equipamentos, mas o recurso pertencia à comunidade. Dessa forma, os moradores se sentiam responsáveis pelo bom funcionamento do sistema e se empenhavam em evitar o desperdício e o mau uso.

Arns também destaca a importância de promover a educação sanitária e a conscientização sobre a importância da higiene e do uso correto da água. Ele relata que, em muitas comunidades, as pessoas não têm acesso a informações básicas sobre como evitar a contaminação da água e como prevenir doenças.

O Sonho de um Parquinho e um Chuveiro: Dignidade em Meio à Precariedade

Um exemplo marcante da entrevista é a história da mãe em uma favela de São Paulo que sonhava com um parquinho e um chuveiro para seus filhos. Essa aspiração aparentemente simples revela a carência e a resiliência dessas comunidades, que lutam por dignidade em meio à precariedade.

A mãe relata que não podia oferecer aos filhos um espaço seguro para brincar e que o acesso à água para higiene era precário. Ela sonhava com um chuveiro para que seus filhos pudessem se lavar e se sentir limpos, algo que ela própria não teve durante um período difícil de sua vida.

Essa história ilustra como a falta de saneamento e de infraestrutura básica afeta a vida das pessoas em todos os aspectos, desde a saúde e a higiene até a autoestima e a qualidade de vida.

Obstáculos e Desafios: Burocracia, Falta de Prioridade e Desigualdade Social

entrevista também revela os obstáculos e desafios enfrentados na busca por soluções para o saneamento básico. A burocracia, a falta de prioridade política e a desigualdade social são barreiras a serem superadas.

Arns relata casos em que projetos de saneamento foram impedidos de serem implementados devido a questões burocráticas e à falta de vontade política. Ele critica a interpretação restritiva das leis e a falta de sensibilidade dos governantes diante da realidade das comunidades carentes.

Ele destaca a importância de mudar a legislação e a forma como as leis são interpretadas, de modo a priorizar o direito humano à água e ao saneamento. Arns defende que, em situações de extrema necessidade, o interesse público deve prevalecer sobre o interesse privado.

Arns critica a falta de prioridade dada ao saneamento básico nas políticas públicas. Ele argumenta que, apesar de o Brasil ser um país rico, com recursos para investir em saneamento, essa área continua sendo negligenciada.

Ele ressalta a importância de sensibilizar a sociedade e os governantes sobre a importância do saneamento básico e de mobilizar a população para exigir seus direitos.

Quebrando o Apartheid Social: A Importância do Encontro e da Colaboração

Arns enfatiza a necessidade de quebrar o “apartheid social” e promover o encontro entre jovens de diferentes classes sociais. Ele relata uma experiência em Brasília, onde jovens de escolas de elite foram levados para conhecer a realidade das favelas.

O encontro foi transformador para ambos os grupos. Os jovens ricos puderam conhecer a realidade das favelas e perceber que nem todos os moradores são bandidos ou criminosos. Os jovens pobres puderam conhecer a realidade dos ricos e perceber que nem todos são corruptos ou exploradores.

Arns defende que, ao se conhecerem e trocarem experiências, os jovens podem construir pontes e superar preconceitos, abrindo caminho para uma sociedade mais justa e igualitária.

O Legado da Sabedoria Chinesa: O Momento de Agir é Agora

Arns conclui a entrevista com uma mensagem inspiradora, baseada na sabedoria chinesa: o melhor momento para plantar uma árvore era há 20 anos, mas o segundo melhor momento é hoje. Ele aplica essa metáfora ao saneamento básico, afirmando que o melhor momento para investir em saneamento era há 50 anos, mas o segundo melhor momento é agora.

Ele convoca a todos a se engajarem nesse processo, cada um a seu modo, contribuindo com ideias, recursos, trabalho e compromisso. Arns defende que, ao trabalharmos juntos, podemos garantir um futuro mais digno para as próximas gerações.

Financiamento e Doações

A Pastoral da Criança é financiada principalmente pelo Ministério da Saúde desde 1985. Além disso, a organização recebe doações de diversas fontes, incluindo pequenas contribuições de pessoas físicas por meio de campanhas nas contas de luz. Nelson Arns destaca a importância de ser um defensor da ciência e de garantir que o conhecimento chegue a quem mais precisa. Ele encoraja as pessoas a participarem da Pastoral da Criança por meio de doações e trabalho voluntário.

A Técnica da Garrafinha d’Água

Em áreas consideradas violentas, Nelson Arns compartilha uma técnica interessante para voluntários da Pastoral da Criança se aproximarem da comunidade com segurança. A técnica envolve comprar uma garrafinha de água em um bar local e iniciar uma conversa casual com os moradores. Esse tempo permite que os moradores avaliem as intenções dos voluntários e decidam se eles podem entrar na comunidade para ajudar as crianças e gestantes. Arns enfatiza a importância de vestir roupas discretas e evitar carregar objetos que possam gerar desconfiança.

Lições Aprendidas no Rio de Janeiro

Nelson Arns relata que, no Rio de Janeiro, aprendeu que a comunidade local se organiza para proteger os voluntários da Pastoral da Criança. Mesmo em áreas com tráfico de drogas e armas, os líderes comunitários designam pessoas para garantir a segurança dos voluntários, pois reconhecem o valor do trabalho que realizam em prol das crianças e gestantes.

O Projeto de um Milhão de Cisternas

Um dos projetos de grande sucesso em que Nelson Arns participou foi o projeto de um milhão de cisternas no semiárido brasileiro. O projeto visava garantir o acesso à água para famílias que sofriam com a seca. Arns explica que o projeto envolveu a padronização das cisternas e a mudança da legislação para permitir que o governo investisse em áreas privadas. Ele destaca a importância de todos colaborarem para mudar a legislação e garantir o direito humano à água.

A Importância da Responsabilidade Individual

Nelson Arns enfatiza que cada pessoa tem a responsabilidade de ajudar o próximo. Ele critica a postura de alguns líderes religiosos que esperam que o Estado resolva todos os problemas. Arns defende que o Estado não pode fazer tudo sozinho e que é preciso que cada um faça a sua parte. Ele compartilha uma passagem bíblica sobre o bom samaritano para ilustrar a importância de ter misericórdia e de agir em prol do próximo.

Fonte: Além da torneira: o impacto do saneamento na dignidade humana